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A vida imita a arte, mas só até o último capítulo

Ilustração de uma pessoa cadeirante vendo o seu próprio reflexo na tela de uma televisão que está na frente dela. A pessoa tem cabelos curtos pretos e usa uma camisa azul. Há elementos coloridos em rosa e azul como um quadro na parede e um abajour.
Ilustração de uma pessoa cadeirante vendo o seu próprio reflexo na tela de uma televisão que está na frente dela. A pessoa tem cabelos curtos pretos e usa uma camisa azul. Há elementos coloridos em rosa e azul como um quadro na parede e um abajour.


Em 2009 estreou na TV Globo Viver a Vida, “novela das nove” que iria contar a história de Luciana Saldanha, modelo interpretada pela atriz Alinne Moraes, que sofre um acidente e fica tetraplégica. Apesar de não ter o costume de assistir à novelas fiquei curiosa para ver como a questão seria abordada e decidi acompanhar a trama.

Se eu assistisse à novela com os olhos e conhecimento que tenho hoje, talvez encontrasse mais erros do que acertos, entre eles o uso de cripface (escolha de atores e atrizes sem deficiência para interpretar personagens com deficiência), mas nós estamos em 2009. Então vamos vestir nossa capa de adolescente de 17 anos e sentar na frente da TV. Essa talvez tenha sido a primeira vez que eu pensei ser possível viver um “amor de novela” sendo mulher cadeirante, mas não é sobre isso que eu quero escrever hoje. Eu quero escrever sobre o que estava acontecendo fora das telinhas durante a exibição da telenovela.

Fora das telinhas eu via uma movimentação. As pessoas sem deficiência pareciam estar interessadas e dispostas a conversar sobre acessibilidade e inclusão, em entender como poderiam ajudar pessoas com deficiência e em mudar seus espaços para que todos pudessem frequentá-lo. Claro que ainda tinham pessoas que ainda nos parabenizavam por atravessar a rua ou por estarmos fazendo compras em um supermercado e paravam nas vagas reservadas “só por cinco minutinhos”, mas parecia que uma mudança de pensamento estava acontecendo. Será que dessa vez a mudança seria real? Será que dessa vez a mudança seria definitiva? Confesso que eu acreditei que sim.

O capítulo final foi ao ar nove meses depois e a movimentação foi interrompida quase instantaneamente. A próxima trama não teria um personagem com deficiência nem iria discutir temas ligados à inclusão e acessibilidade, então não demorou para o tema ser esquecido e banheiros e provadores voltarem a ser usados como depósito de coisas quebradas ou sem utilidade com a alegação de que não eram usados por ninguém. O famoso círculo aparentemente sem fim do “lugares não são acessíveis porque pessoas com deficiência não os frequentam e pessoas com deficiência não os frequentam porque não são acessíveis“.

Tentar colocar algum assunto ligado à pessoas com deficiência na roda de conversa era o mesmo que entrar na Torre de Babel e automaticamente começar a falar uma língua diferente dos demais, embora tecnicamente falássemos a mesma língua. O que tinha mudado? O que tinha dado errado?

Hoje, olhando a situação “de fora” e com um pouco de conhecimento, percebo que uma das muitas razões é a ausência de pessoas com deficiência nos comerciais de TV. Sim, você leu direito. As peças publicitárias que em apenas alguns minutos são capazes de colocar expressões no nosso vocabulário (na minha casa usamos “não é assim uma Brastemp” para descrever coisas ruins ou de pouca qualidade até hoje), de nos fazer desejar algum produto ou serviço, de fazer associações e, às vezes, até de refletir. Praticamente nenhuma delas tem pessoas com deficiência em seu elenco. Não se vê atores ou atrizes com alguma deficiência em comerciais de cerveja, em campanhas de dia dos namorados, muito menos como membros de “família comercial de margarina”. Por que isso acontece? Pode parecer, mas essa não é uma discussão recente. 

Em 1989, Susan Scott-Parker, fundadora da Business Disability International, escreveu um artigo chamado “They aren’t in the brief (Eles não estão no briefing), onde discorre sobre a presença de pessoas com deficiência em comerciais de TV. Nele a autora aponta para o fato de, já naquela época, a maior parte das propagandas com alguma pessoa com deficiência no elenco ser uma campanha de caridade. E quando não tinha nenhuma relação com caridade caia nos famigerados estereótipos.

Talvez muitos de nós tenhamos perdido o hábito de prestar atenção nas propagandas e de acompanhar fielmente novelas por tantos meses, mas com o advento da internet e das redes sociais, uma hora ou outra vamos nos deparar com uma cena que virou assunto de discussão ou se transformou em um meme.  Ou seja, seremos impactados por elas.

Quanto maior for a incidência de pessoas com deficiência fazendo coisas comuns na TV, maior é a chance de tirar o tabu do que se refere à acessibilidade e inclusão e conversar sobre o assunto se torne tão natural quanto conversar sobre o último episódio da novela. Mas, por favor, que não seja para dizer que somos exemplo de superação. E a mudança de pensamento de fato acontecer.

Já que estamos falando de novela…

No momento em que escrevo esse texto a “trama das nove” é Travessia, que tem no elenco Tabata Contri, atriz e mulher cadeirante, interpretando a advogada Juliana. Dessa vez não estou acompanhando a novela, mas estou torcendo para que a mesma movimentação que eu vi fora das telinhas em 2009 esteja acontecendo. Porém, com uma diferença: que não seja uma movimentação com prazo de validade. 

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