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O que eu achei da campanha da Vogue

Tanto como estudante/empreendedora no mercado de acessibilidade, quanto como publicitária, eu pensei “não pode ser”.

DESCRIÇÃO DA IMAGEM: a frente de uma parede branca o ator paulinho vilhena está em pé, somente de bermuda preta e com uma prótese na perna direita. ao lado dele, a atriz cléo pires, de maiô preto aparece sem o braço direito, o esquerdo está com a mão na cintura. nesse caso é importante explicar que eles na verdade não possuem essas deficiências físicas, isso foi produzido com maquiagem e edição no photoshop.

A hashtag da campanha é #SomosTodosParalímpicos.

Bom, para falar bem a verdade minha primeira reação foi essa:

DESCRIÇÃO DA IMAGEM: print de um post meu no Facebook com a mensagem “eu nem sei por onde começar a falar dessa campanha da cléo pires e paulinho vilhena, gente. gente. gente.”

E a verdade era essa, eu não sabia o que estava acontecendo. Por mais que eu achasse o maior absurdo que eu vi nos últimos tempos, eu não poderia opinar sem antes ~tentar entender~com calma que po**a era aquela.

  • Será possível que aquilo tinha um fundamento?
  • Será possível que ninguém pensou que poderia ter essa reação?
  • Será possível que eles tenham consultado as pessoas com deficiência antes de entrar no ar?
  • Será possível que não existe um plano de contingência?
  • Será possível que isso é o começo torto de algo que vai terminar melhor?

Ana Clara-planejamento e a Ana Clara-inclusão começaram a discutir sobre isso e, olha, não foi uma conversa fácil.

Eu posso imaginar uma série de motivos para a leitura criativa e publicitária — afinal, eu já passei por isso (planejamento e criação) em outras situações muito parecidas, mas não estava envolvida nessa. Mas eu também posso imaginar muito motivos para que isso seja ofensivo para o público de pessoas com deficiência que podem não se sentir representados, e nesse caso precisaria validar a hipótese com eles — pois eu não passei por isso — e pesquisar mais sobre o desenvolvimento da campanha, pois eu não estava envolvida.

Percebem o destaques em negrito? Algumas coisas eu sei e tenho consciência disso. Outras eu não sei e também tenho consciência disso. E acredito que foi essa parte da consciência que mais CAUSOU nessa campanha toda.

Por isso eu analisei por esses vieses: Consciência, Empatia e Representatividade. E também por Conceito, Criação e Execução.

a leitura de inclusão

Antes de mais nada: em NENHUM fucking canal tinha uma descrição da foto. Nem instagram, nem facebook, nem na vogue, nem nada. Fazer um campanha que fala de atletas paralímpicos que, dentre os quais, existem cegos e pessoas de baixa visão e não colocar a áudio-descrição da imagem é errar no passo 1. E curiosamente eu não vi ninguém apontando isso.

Mas vamos lá. Quando eu conheci a Katia Fiorante, intérprete de Libras que me ajudou na produção do vídeo, ela me falou de uma frase que foi extremamente marcante para mim, quase tanto quanto a escultura da santa ceia, que se refere ao lema do movimento de luta pelos direitos das pessoas com deficiência:

DESCRIÇÃO DA IMAGEM: céu azul, galhos de árvore e uma pessoa segura um quadro branco com moldura de madeira detém o texto “Nothing About us Without us” em vermelho. Vemos somente as mãos da pessoa, ela está atrás do quadro.

NADA SOBRE NÓS, SEM NÓS

NADA quer dizer “Nenhum resultado”: lei, política pública, programa, serviço, projeto, campanha, financiamento, edificação, aparelho, equipamento, utensílio, sistema, estratégia, benefício etc. Cada um destes resultados se localiza em um dos (ou mais de um dos ou todos os) campos de atividade como, por exemplo, educação, trabalho, saúde, reabilitação, transporte, lazer, recreação, esportes, turismo, cultura, artes, religião.

SOBRE NÓS, ou seja, “a respeito das pessoas com deficiência”. Estas pessoas são de qualquer etnia, raça, gênero, idade, nacionalidade, naturalidade etc., e a deficiência pode ser física, intelectual, visual, auditiva, psicossocial ou múltipla. Segue-se uma vírgula (com função de elipse, uma figura de linguagem que substitui uma locução verbal) que, neste caso, substitui a expressão “haverá de ser gerado”.

SEM NÓS, ou seja, “sem a plena participação das próprias pessoas com deficiência”. Esta participação, individual ou coletiva, mediante qualquer meio de comunicação, deverá ocorrer em todas as etapas do processo de geração dos resultados acima referidos. As principais etapas são: a elaboração, o refinamento, o acabamento, a implementação, o monitoramento, a avaliação e o contínuo aperfeiçoamento.

Juntando as palavras grifadas, temos: “Nenhum resultado a respeito das pessoas com deficiência haverá de ser gerado sem a plena participação das próprias pessoas com deficiência”. (Fonte: Bengala legal)

Isso é forte e potente demais. Mas em breve eu farei um post só pra falar disso.

muito que bem.

esse foi o primeiro ponto que fui pesquisar: qual terá sido a participação ativa dos personagens no desenvolvimento dessa ideia de campanha? Porque, por mais que isso tenha a cara típica de ter nascido em sala de brainstorm rodeado de publicitês, me parecia dificílimo, quase impossível que pessoas com deficiência não tivessem sido consultadas (ao menos os atletas envolvidos nas fotos, pra dizer o mínimo).

Eis que o Marcelo Rubens Paiva (jornalista, escritor, um dos diretores criativos da cerimônia de abertura da Paralimpíada AND cadeirante) tuitou:

DESCRIÇÃO DA IMAGEM: print de um tuíte do Marcelo Rubens paiva (@marcelorubens) dizendo “Qual o problema da campanha da Vogue? Os ânimos estão acirrados…”

E na coluna dele, respondeu as primeiras críticas que já estavam surgindo:

Qual o problema?
A campanha é SOMOS TODOS PARALÍMPICOS.
Na verdade, Cleo e Paulinho são embaixadores paralímpicos [indicação minha].
E a campanha foi criada pela agência África, de outro embaixador paraolímpico, Nizan Guanaes.
Foi um jogo curioso. Uma provocação.
Relaxa, gente.
Claro, agora venha uma campanha com amputados de verdade.
E os memes já surgiram.

Mais tarde, descobri que o Comitê Paralímpico Brasileiro também se pronunciou:

Sobre o caso da campanha divulgada nas redes hoje, gostaríamos de falar algumas coisas. Temos muito orgulho dos nossos embaixadores. Eles são nossos grandes parceiros, usando suas imagens na mídia, nos nossos eventos e nas redes sociais.

Todos aceitaram prontamente a missão de divulgar o esporte paralímpico, comemorando conosco cada novo seguidor e cada novo espaço conquistado. Eles não necessariamente são pessoas ligadas ao esporte, mas que têm relevância e que nos ajudam a chamar a atenção de vocês para o nosso movimento.

Agradecemos a preocupação de todos os que se envolveram hoje e agradecemos, também, à Cleo Pires e ao Paulo Vilhena, que se mobilizaram para que ganhássemos visibilidade. Isso mostra que estamos crescendo e chamando cada vez mais atenção para atletas que nem sempre têm o espaço que merecem.

Estamos a duas semanas do início dos Jogos Rio 2016 e queremos contar com essa mesma mobilização, antes, durante e depois dos Jogos Paralímpicos. Nosso sonho é que as pessoas com deficiência estejam sempre em pauta. Só assim viveremos em uma sociedade realmente inclusiva. Esperamos vocês na torcida junto com a gente.

Já comprou seu ingresso?

OK, teoricamente, pelo que foi possível saber através do meu lado da tela nessas duas horas de pesquisa, eles passaram por esse ponto. Check.

Agora, sobre EMPATIA e REPRESENTATIVIDADE. São duas palavras muito ~em alta~ que são difíceis de compreender e ainda mais de exercer. O primeiro é a capacidade de se colocar no lugar do outro e o segundo de representar politicamente os interesses de determinado grupo classe social ou de um povo.

Eu imagino que eles tenham tido essa intenção. De gerar uma mensagem ou questionamento empático para que as pessoas sem deficiência se perguntem “porra, deve ser difícil pra caramba né?” e isso é importante! É necessário.

Mas então o que é que deu tão errado? Por que a esmagadora maioria de pessoas — com e sem deficiência — com quem eu conversei e se pronunciou nas redes rejeitou tanto essa campanha infeliz?

a leitura publicitária

“TEM QUE SER MUITO DO CARALHO!”, “TEM QUE SER FODA!”, “VAMOS CHOCAR”, “VAMOS QUEBRAR PARADIGMAS”. Facilmente é possível imaginar esse tipo de comentário numa sala de brain para a campanha. O briefing é esse, é desafiador, é oportunidade de fazer uma coisa incrível.

E eles me vem com o conceito de “SomosTodos__________ :/

Gente, poxa. Conceitualmente é errado e criativamente é preguiçoso (vide as outras vezes que a mesma agência usou a mesma hashtag — errada — para outros assuntos). A representatividade e respeito às diferenças vai pro lixo, a mensagem é falsa — por que eu seria paralímpica? — e mesmo que seja só um desdobramento da primeira hashtag oficial (#SomosTodosOlímpicos) ainda assim, achei fraca. In my humble opinion.

Aí vem a execução, como a gente conta essa história? E aí, AÍ BEM AÍ é que degringolou. Existem tantas formas de materializar isso! Uma, entre muitas,é a abordagem radical, chocante…“corta lá o braço da Cléo, corta a perna do Vilhena, todo mundo vai ficar O QUEEEE”. Mas o que me incomoda é ficou um coitadismo travestido de empoderamento. Concordam que o fluxo de entendimento da mensagem é

1- nossa, que isso? [choque]

2- ai que horror deve ser não ter um braço/perna né? [coitadismo]

3- e essas pessoas ainda vão participar dos jogos, olha que superação, eles são foda! [empoderamento]

4- com tudo isso né, tadinho, ainda consegue. pô, que barra. [coitadismo]

Tem tanta forma legal de explorar o corpo como POTÊNCIA e não focar na FALTA de algo que, de novo, acho preguiçoso criativamente falando. Vamos falar dos jogos paralímpicos, então vamos colocar os amputados que mostra da forma mais LITERAL que eles tem alguma “coisa faltando”.

Aí a campanha vai pro ar e pá, começam as críticas. Qualquer um que já tenha participado de um War Room de campanha sabe que haters gonna hate/don’t feed the trolls e em muita coisa que a gente tem que esperar pra ver o que realmente significa. OKAY, mas partir do momento em que a curva vai subindo e provavelmente 98% dos comentários é negativo, você tem que ouvir as pessoas — você está falando com elas.

Entra o post da Cléo. Gente, poxa (2). Se chega no nível que você sente a necessidade de se justificar explicando o briefing, é porque deu ruim mesmo. ponto.

E aqui é importante frisar a abordagem meio arrogante de “vocês não entenderam, seus burros”. A gente entendeu sim, mas não gostou. É diferente.

E por fim, eu tinha me atentado muito numa informação do Marcelo Rubens Paiva que disse “Relaxa, gente. Claro, agora venha uma campanha com amputados de verdade.”

Então pode ser que esse seja só o capítulo 1 de uma linha do tempo num slide de cronograma.

Aí entra uma opinião pessoal: aprendi (e acredito) que as campanhas em dois tempos são uma tremenda perda tempo, dinheiro e assertividade.

PRIMEIRO A GENTE LANÇA O TEASER UNBRANDED, DEPOIS A GENTE LINKA COM A MARCA.

PRIMEIRO A GENTE ESPALHA ESSA MENSAGEM, DEPOIS A GENTE USA NO COMERCIAL.

PRIMEIRO A GENTE FAZ ______ E DEPOIS A GENTE FAZ ______

Independentemente do que sejam as lacunas, você tem um esforço dobrado de impactar as mesmas pessoas 2x. (Eu sei que tem ferramentas pra isso, tá mídias?) E se aquelas que não forem impactadas pela segunda ficarem só com a primeira mensagem? E aí? Não valeria mais a pena criar uma única mensagem forte o suficiente e ainda assim otimizar o investimento e produção? Eu — pessoalmente — acredito que sim. In my humble opinion (2)

Por fim, imagino que a escolha dos globais para representarem os atletas é um resquício do pensamento engessado de grande mídia. “O povo só presta atenção se for celebridade”. Se sim, é uma triste realidade. Se é triste, por que não mudá-la? E DE NOVO. Não devemos subestimar os brasileiros e sua capacidade de entendimento, seu orgulho, patriotismo e capacidade de abraçar o outro. A gente torce pro último colocado, a gente torce pro refugiado, a gente torce pro juíz, a gente torce pra gente. Gente como a gente. A gente vai torcer para os atletas paralímpicos. Eles são como a gente. Mas nós não somos como eles.

Então, para completar o título do post, minha resposta é que: não gostei. Não gostei como entusiasta de inclusão e não gostei como publicitária. Entendo os motivos mas discordo dos processo e resultados.

E você o que achou? deixe aqui nos comentários!

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